Começo com lembranças. Da infância, do instante em que aprendi a ler e escrever, no mesmo momento em que passava horas brincando sob a parreira de chuchu do quintal. Sua sombra era abrigo para minhas invenções. Fazia pastéis com folhas grandes, recheados de terra molhada. Foi nesse universo de raízes e misturas de legumes e criatividade que comecei a desenhar minhas primeiras histórias no papel. Tinha cinco anos.
Ler e escrever preenchiam meu tempo, alimentavam minha imaginação e despertavam algo em mim que, hoje, reconheço como parte essencial da minha vida. Essa história já contei muitas vezes, mas vale repetir. Porque hoje falo diretamente com minha memória infantil. E também com a sua.
Na escola, aos 10 anos, recebi um prêmio literário por uma história sobre árvores. Talvez tenha sido o acaso, talvez já fosse um caminho traçado. Porque eu morava em uma casa com um quintal cheio de árvores frutíferas. Tinha abacateiro, laranjeira, pitangueira, mamoeiro e outras. Minha experiência com o mundo vinha dali, de observar as árvores, de colher frutos, de sentir o cheiro da terra. Talvez, sem perceber, eu já estivesse narrando o que me fazia sentido, o que me conectava à vida.
Hoje, ao olhar para o passado, percebo como cada experiência traçou o caminho que me trouxe até aqui. De certa forma, continuo a mesma brincadeira. Agora, uma brincadeira séria, responsável. Contar histórias é um ofício que carrega em si a ética e o compromisso com a infância de cada um e o desenvolvimento humano.
Mais do que uma atividade lúdica ou uma tradição cultural, contar histórias é uma necessidade humana. Há 20 anos digo e defendo esse ponto de vista embasado na teoria e, principalmente, na prática. As histórias despertam a imaginação, provocam emoções, criam laços. A palavra tem poder. Ela pode nos elevar ao topo de uma montanha, quase tocando as nuvens. Mas também pode nos lançar em uma queda livre e dolorosa. A palavra fortalece, acolhe, embala, nos faz vibrar e estremecer.
Por isso, celebrar a palavra é celebrar aqueles que a preservam: os contadores de histórias. São eles que estendem a mão para que o outro — aquele que escuta, que sente — se veja como protagonista de sua própria trajetória. A história pertence a quem a conta, mas também a quem a escuta. E é preciso valorizar esse encontro, que é carregado de subjetividade.
O contador de histórias aquece as noites frias de inverno como um cobertor de palavras. Refresca os dias quentes de verão. Manda flores na primavera para perfumar de histórias o nosso cotidiano. E, no outono, espalha folhas secas no caminho, lembrando que é preciso se despir para renascer mais forte. Contar histórias é um ato de amor. Não porque a fantasia é necessária, mas porque é palpável, porque conseguimos perceber a transformação — ela é visível aos nossos olhos.
Que possamos, juntos, contar mais histórias, lembrar mais da nossa infância e alimentar a infância das crianças no presente. Tenhamos encontros mais saudáveis com as histórias, pois elas também são preventivas, contribuem para a saúde mental e criam ambientes de acolhimento.
O Dia do Contador de Histórias (20 de março) não deve ser apenas uma data no calendário, mas uma oportunidade de nutrir as pessoas com boas narrativas, inspirando-as a imaginar, sentir e se conectar entre si.
*Rosane Castro é autora de obras infantojuvenis, contadora de histórias, arte-educadora e produtora cultural, além de acadêmica de Psicologia.